Um destino que me fez sentir um medo repentino ao clicar “comprar” no site de passagens aéreas se tornou minha casa por nove meses. Trabalhando em um hostel numa cidadezinha à beira do Mar Vermelho, no sul do Sinai, foi onde me senti parte de uma comunidade pela primeira vez, como se eu sempre tivesse pertencido a esse lugar.
Sendo uma realidade tão distante da minha, pela cultura e religião, pensei que os egípcios fossem diferentes de nós, do mundo ocidental. Tamanha foi a minha surpresa ao perceber o óbvio: não importa o quão longe você vá e quão distinta seja de uma cultura, o mundo é tão globalizado que todos nós temos muito em comum. Os jovens que conheci lá se parecem muito com os do Brasil, com conflitos internos como os nossos, não querem viver pelos meios tradicionais e adoram uma festa underground como nós.
E foi vendo comportamentos semelhantes, tanto aos do Brasil quanto dos países do mundo considerados com uma cultura mais parecida com a minha, que eu fui encontrando identificação no Mundo Árabe. Inclusive, talvez eu tenha vivido lá por tanto tempo justamente por terem um sorriso no rosto e um jeito de ser que me lembra o do brasileiro.
Afinal, como eu fui parar no Egito?
Eu já estava há cinco meses viajando pela Europa, andando pelas beiradas e conhecendo o Leste Europeu. Era fevereiro de 2023, o fim do inverno se aproximava, eu voluntariava em um hostel estranho na capital da Bulgária e sonhava com um lugar onde não precisasse usar tantas camadas de roupa.
Eu me sentia tão livre, abrindo o mapa mundi do computador para decidir o meu próximo destino. Em uma tarde dessas, vendo neve cair pela janela de um café em Sofia, encontrei um hostel no Egito que desafiava tudo o que já tinha ouvido sobre o país. Em Dahab, com vista para o mar e as montanhas, parecia o paraíso. E se? Comecei a pesquisar sobre como chegar, segurança para mulheres, o que fazer, basicamente aonde diabos eu to indo. Também encontrei online duas brasileiras vivendo no Egito, o que me fez pensar que elas não estariam lá se fosse tão perigoso assim.
Naquela época, meu dinheiro estava acabando e eu não sabia por quanto tempo mais viajaria. Ir para o Egito pareceu a oportunidade de economizar e durar mais alguns meses como andarilha pelo mundo. Apliquei para o voluntariado e fiz a entrevista. Os dias passaram e, mesmo sem a resposta da Fatma, gerente de Experiências que mais tarde se tornaria minha amiga, comprei uma passagem saindo de Istambul para o Cairo. Na mesma hora me subiu um medo: e se eu não for aceita no voluntariado, o que vou fazer sozinha no Egito? Assisti vídeos no Youtube e todos diziam que eu estaria em risco sendo uma mulher viajando sozinha pelo país.
Mas essa é a parte boa de tomar decisões em momentos de coragem repentina: o que está feito, está feito.
Dahab – um paraíso para nômades digitais com vista para o Mar Vermelho
Em terras beduínas, no sul do Sinai, existe Dahab. Uma cidade pequena e hippie, com casas brancas e asfalto só nas ruas principais, às margens das águas azuis profundas do Mar Vermelho e de frente para as montanhas da Arábia Saudita. Onde o tempo passa diferente e todos os anos centenas de estrangeiros chegam só de passagem e nunca mais saem. Eu fui só mais uma vítima.
Costumava brincar conversando com a Rachel, voluntária canadense e minha colega de quarto por meses, que lá era como o cassino em Percy Jackson: ficávamos hipnotizadas pela vida mansa, pelo mar, pelo acolhimento da comunidade, pelo baixo custo de vida, e nunca conseguíamos sair.
Pelas manhãs, eu emprestava o snorkel disponibilizado pelo hostel e ia para praia. Nadava pela superfície com o meu rosto dentro d'água para ver o mundo submerso. Me impressionava com os corais gigantes de cores vibrantes e com a diversidade de peixes que viviam ali, pertinho de mim. Dahab é conhecida por ser perfeita para fazer mergulho e kite surf, e tem um dos pontos mais perigosos para fazer mergulho livre: o Blue Hole.
Isso resulta em uma comunidade enorme de expatriados, pessoas de outros países que escolheram viver no Egito. Eles trabalham remotamente, gastam pouco pela desvalorização da moeda egípcia e vivem num universo à parte do mundo, se misturando aos beduínos e aos egípcios que fogem do caos do Cairo.
Em Dahab sempre me senti segura, pois a cidade é diferente de outras partes do país realmente conservadoras – lá, eu andava pelas ruas com roupas que usaria no Brasil, sem me preocupar com olhares e com assédio, e não sentia medo ao voltar para casa de madrugada andando sozinha. São tantos estrangeiros na cidade, que os locais já estão acostumados. Alguns princípios culturais ainda imperam, como não beber álcool em público, mas eu sempre via pessoas com uma sacola plástica preta misteriosa, que todo mundo sabe o que tem dentro.
Por ter uma comunidade estrangeira tão grande, Dahab dispõe de muitos negócios com estilo Ocidental – mas de um jeitinho hippie chic que só Dahab tem. Meus restaurantes preferidos servem desde comida mexicana e japonesa a veggie bowls e avocado toasts. Para comer café da manhã egípcio, sanduíches de falafel e peixe fresco, estamos bem servidos com restaurantes locais. Apesar de a cultura alimentar ter muita carne, diversos pratos tradicionais são vegetarianos.
Aos poucos comecei a me habituar, saindo à noite com os amigos para tomar chá ao invés de cerveja, vendo os egípcios comer com as mãos como fazemos na Amazônia. Parava uma caminhonete no meio da rua e subia sem nem pensar duas vezes, pois mesmo sem nenhuma placa eu sabia que era um táxi. Nos mercados, quase sempre falavam comigo em árabe, achando que eu era egípcia. Recebia um sorriso enorme quando dizia que era "brasileia". Aí percebi a semelhança entre árabes e latinos, pois eu via tantos rostos que poderiam ser brasileiros.
Se tornou parte da minha rotina ver homens usando túnicas e turbantes, comprando Coca-Cola, fumando cigarro e dirigindo como se não houvessem leis de trânsito (lá, não havia mesmo). As mulheres são mais reclusas, talvez porque não podem interagir ou pela barreira linguística, enquanto os homens falam inglês, trabalham com turismo e tem mais contato com os visitantes.
Mas esses são os beduínos, o povo nativo dos desertos das arábias. Inclusive, eles consideram beduíno como sua nacionalidade e o Sinai o seu país. Dahab, antes de ser tornar conhecida internacionalmente, era um vilarejo de pescadores. Em árabe, o nome significa "ouro" – referindo-se talvez à terra preciosa que eles acreditavam ter encontrado e até hoje ludibria tanta gente. Muitos desses homens sequer tem documentos e nunca viram o restante do Egito.
Uma comunidade que só tem em Dahab
Na beira do mar, todos os dias eu via os mesmos rostos. Depois de um tempo, passou a ser natural cumprimentar essas pessoas. Até os momentos com pé dentro d'água viravam oportunidade de conhecer quem sempre estava por lá. Depois entendi que ali todo mundo se conhecia. Tanto os egípcios, quanto os estrangeiros. Falar com pessoas abertas e interessadas em me conhecer foi o que me fez sentir parte daquele lugar tão rápido. Foi assim mesmo que eu conheci o Anas, um dos meus romances egípcios que apesar de intenso não durou muito.
Os árabes são famosos por sua hospitalidade e eu pude viver para ver. Não mediam esforços para me ajudar a resolver algo, ainda mais se o meu problema fosse em árabe. No início, eu me incomodava ao deixar que um amigo pagasse pelas minhas bebidas, depois eu entendi que isso era uma gentileza sincera. Sempre compartilham o que tem, pois onde come um, come dois.
Em uma noite, fui visitar uma amiga, mas ela estava em outra casa e tinha alugado a dela para amigos visitando Dahab. Sem saber, eu bati na porta dela e encontrei esse casal. Mesmo sem me conhecer, me convidaram para entrar, e eu imaginei que a Tata, minha amiga, logo chegaria. Ao invés de dizer que ela estava em outro lugar e me dispensar, eles colocaram mais um prato na mesa e me convidaram para jantar.
Todas as semanas, eu sabia que as terças à noite seriam no Open Mic, um evento aberto onde qualquer um pode pegar o microfone e fazer uma apresentação (cantar, tocar um instrumento, recitar um poema). Toda a comunidade de Dahab se reune nesse espaço pequeno que sempre lota e tem que chegar cedo para conseguir lugar para sentar.
Não posso esquecer de falar sobre as pessoas que eu conheci no hostel, que se tornaram meus melhores amigos.
Tudo começou voluntariando em um hostel
O hostel tinha cinco meses funcionando quando eu cheguei lá para voluntariar. Era como o meu primeiro voluntariado em Praga, conhecido por promover vários eventos para que os hóspedes socializem e se divirtam na cidade. Eu conhecia pessoas de diversos países, percebendo que o Egito era um destino muito mais comum do que pensava. O diferencial desse hostel era que eu vivia rodeada pelas montanhas douradas do deserto do Sinai, perto do azul do mar, vendo beduínos dirigindo caminhonetes e cabras caminhando nas ruas. Vivi minha vida toda na beira do rio, mas nunca na beira da praia!
Eu comecei ajudando a Yasmina, do marketing, como fotógrafa. Ia aos eventos acompanhando os hóspedes e fotografava a experiência. Essa posição me rendeu a oportunidade de subir o Monte Sinai para ver o amanhecer e conhecer o lugar mais ao sul do Sinai, no parque nacional Ras Muhammad. Só que eu tava passando por um longo bloqueio criativo e depois de um tempo, quis fazer algo diferente. Foi aí que apareceu a oportunidade de trabalhar como recepcionista, recebendo em pounds egípcios. Então me tornei a primeira estrangeira a entrar na equipe.
Morava na parte mais local de Dahab, Assala, numa casa simples provida pelo hostel só para as voluntárias mulheres. Depois do primeiro mês já tinha alugado uma bicicleta. Sempre que eu acordava cedo demais e não conseguia mais dormir, subia nela e ia para a beira do mar ver o sol nascer na Arábia Saudita. O céu limpo do deserto proporcionava os melhores nasceres e pores do sol.
Trabalhava seis horas por dia e nos turnos da manhã sempre saía direto para a praia. Rapidamente eu aprendi a administrar as plataformas, os registros financeiros e terminava meu turno em ponto, enquanto os outros recepcionistas frequentemente pareciam ter esquecido de algo e passavam quase uma hora extra tentando encontrar o erro.
A cada mês me aproximava mais das pessoas com quem eu trabalhava. A Rachel se tornou uma das minhas pessoas preferidas da vida. Tinha o Morad, o Mansor e a Sam de Operações, a Fatma de Experiências, a minha gerente Beebs, a Yasmina. O Amir e o Salam que também eram recepcionistas, o César, mexicano que trouxe para a minha vida a latinidade que só ele tem. Sempre nos encontrávamos nas horas livres, no trabalho, e quase todas as noites reuníamos na casa de alguém. É fato sobre os egípcios que eles fumam muito e sempre dormem muito tarde. Eu e a Rachel sempre éramos as primeiras a ir para cama, e meus amigos ficavam até três, quatro da manhã. Sempre.
Quando a saudade de casa começou a bater mais forte e eu pensava em voltar, fui surpreendida com a notícia de que eles me consideravam para ocupar a posição de gerente da Beebs, que ia para o Cairo abrir um novo hostel. Tudo mudou, afinal ser a gerente de um hostel no Egito era uma grande oportunidade, ainda mais porque eu sentia que precisava de algo que me fizesse sentir que estava progredindo na vida.
Então eu afastei a ideia de retorno ao Brasil e aceitei a promoção. Mas antes de começar, tirei "férias" do Egito, para ver como andava a vida fora do Mundo Árabe. Planejei um mês voluntariado na Espanha – do qual eu desisti para viajar com um australiano que hoje é o meu namorado, mas isso é outra história.
Quando retornei para o Sinai, era como voltar para casa
Depois dessa viagem, o pior do verão escaldante no deserto já tinha passado. Ao voltar para Dahab dividi com a Rachel a casa de dois amigos, um israelense e um sérvio, enquanto eles estavam fora da cidade. Ao fim de Setembro, juntei as escovas de dente com o Steven, o australiano. Eu já conhecia as ruas, as pessoas, tinha minha bicicleta me esperando, eu fazia parte daquele lugar.
Parece que o tempo que eu passei até então foi uma longa jornada, cheia de experiências novas. Porém, assim que assumi o cargo de gerente, três meses se passaram em um piscar de olhos. Cada dia estava repleto de desafios, com responsabilidades administrativas e financeiras, gerenciando as operações da recepção e a equipe, e tudo foi muito bom para ver do quanto sou capaz.
Ainda assim, o volume de trabalho grande e não era bem recompensado. Eu saía menos, parei de ir para praia, pouco tinha disposição para fazer coisas para mim mesma e trabalhava direto toda as oito horas do dia para cumprir minhas funções. Aos poucos, a vida em Dahab foi perdendo o brilho.
Então, eu me vi em uma encruzilhada. O fim do ano se aproximava e a ideia de retornar ao Brasil martelava novamente na minha cabeça. Decidi que era hora de encerrar esse capítulo, levando comigo memórias preciosas e a certeza de que essa experiência havia me transformado profundamente.
Um apartamento só nosso com vista para o Mar Vermelho
Enquanto tudo acontecia, também havia o meu relacionamento florescendo. O Steven estava de passagem e assim como eu se encantou por Dahab e decidiu ficar. Quando começamos a namorar, ele alugou um lugar para que morássemos juntos. Ele comprou uma bicicleta, investiu em especializações de mergulho e, como já tinha sido hóspede do hostel e conhecia todo mundo, tínhamos os nossos amigos.
O primeiro lugar onde moramos era uma casa rústica em Lighthouse, toda de madeira, com a sala e o corredor a céu aberto, e uma escada espiral nos levava ao terraço no segundo piso. Lá foi o começo da minha nova vida, tinha outro sabor, uma seriedade de que eu ficaria para valer. Aos poucos fomos aprofundando a nossa relação, criando os nossos hábitos, pondo abaixo nossos muros e se sentindo à vontade mesmo nos atos mais naturais do corpo humano.
Nessa casa comemoramos o meu aniversário de 25 anos, no dia 7 de Outubro, celebrando com todos os nossos amigos. Nesse mesmo dia, enquanto eu me arrumava para a festa, vimos a notícia do ataque que seria o início do conflito atual entre Israel e Palestina, acontecendo a somente 370 km de distância de nós. Nas próximas semanas, eu via o Steven acordar com a cara no celular, vendo as notícias, com medo do caos chegar no sul do Sinai e pôr nossas vidas em risco. Até hoje, o Egito nunca entrou na guerra.
Depois de um mês nos mudamos de lá, continuamos em Lighthouse, mas dessa vez fomos para um apartamento com uma janela que quase ocupava toda a parede e uma sacada de frente para o nascer do sol. O apartamento quase não tinha nenhuma decoração, mas a localização era o principal adereço. Morando lá eu me pegava pensando sobre a vida, sobre quantas vezes (não) imaginei que me amigaria com um gringo, vivendo com vista para o Mar Vermelho. Eu nunca teria visto Dahab dessa maneira se não fosse pelo Steven.
Ele já tinha me visto nos meus dias mais apáticos, já tinha desistido de me convidar para ir para praia e o meu desânimo nos afetava, quando em um dia que ainda nem tínhamos saído da cama, afirmei que poderíamos comprar uma passagem para o Brasil. Liguei para o meu chefe e me demiti uma hora depois. Eu tinha decidido que já não valia mais a pena ficar lá e aceitei que o meu trabalho não sustentaria a nova fase que eu esperava ter.
No caminho para o aeroporto do Cairo, sentia que o Egito tinha se tornado uma segunda casa para mim. Eu saía sem nenhum dos medos com os quais tinha chegado, pensava nos amigos que ocuparam um espaço crucial nessa minha jornada e me fizeram sentir parte integral de uma comunidade. Agora posso falar sobre o quão rica é a cultura árabe e o quão acolhedoras são as pessoas, sobre como a comida é deliciosa – só eu sei a falta que o café da manhã egípcio com hummus, falafel e pão pita faz. O Mundo Árabe se abriu para mim, desde então eu nunca mais fui a mesma e espero ansiosamente poder voltar.
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